sexta-feira, novembro 30, 2007

Cantando e Rindo, a cantiga é uma arma

Do insuspeito Blog Grande Loja do Queijo Limiano publicamos o seguinte post, por causa das referências ao cantor Fausto, datado do de 07.09.2007:


Em Portugal, desde finais dos anos sessenta e até aos anos oitenta, a música popular, no seu maior espectro sonoro, cantou-se e tocou-se à esquerda e então virou-se o disco e cantou-se o mesmo, mas em coro com as editoras internacionais, que desconhecem outra cor política que não a do lucro. Trovante, Rui Veloso, UHF, Xutos e Pontapés, Delfins, e outros que se lhes seguiram, não apagam a imagem sonora dos anos precedentes.

Em 1974, Uma Gaivota voava, voava, num mar de rosas encarnadas e cravos de ocasião, pela voz esquecida de uma Ermelinda Duarte.

Nesse mesmo ano, a explosão de música popular dos cantores de intervenção, avassalou todas as ondas de rádio disponíveis e fixou músicas que se tornaram standards.

José Afonso, cantava a toda a hora, não só a Grândola Vila Morena, como as músicas antigas dos álbuns dos anos setenta, com destaque para o Venham mais cinco e a Formiga no Carreiro. José Mário Branco entoava a Ronda do soldadinho que não se pudera ouvir anteriormente e contava a história de uma mãe e dos seus dois filhos.

A par de José Afonso, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho, José Jorge Letria, Luís Cília, GAC-Vozes na Luta, Francisco Fanhais, outros apareceram na onda de Manuel Freire e do sonho que comandava a vida desde o final dos anos sessenta.

Em 1970, os nomes sonantes no panorama musical de qualidade mínima, já são os mesmos de sempre: Manuel Freire a cantar Gedeão, os discos Movieplay a editar Nuno Filipe a trinar a Cantiga da Manhã e José Afonso com a canção de embalar. Com a chegada do Tempo Zip, na sequência do programa televisivo, aparecem Nuno Martins, Fernando Lopes, Joaquim Letria, Thilo Krassman, Urbano Tavares Rodrigues, para além do trio de fundadores e apresentadores do programa, Carlos Cruz, Raul Solnado e Fialho Gouveia.


Nesse tempo de zips, a toada geral da música portuguesa, soava à esquerda, mesmo nos festivais nacionais da canção, durante alguns anos menosprezados pelos promotores dos baladeiros e autores das letras das suas canções. Um deles, apresentador de rádio, João Paulo Guerra, definiu essas canções festivaleiras, protagonizadas nos anos sessenta por nomes como António Calvário, António Mourão, Madalena Iglésias, mesmo Paco Bandeira, como “nacional-cançonetismo”.

Seja como for, no início dos anos setenta, logo em 1971, as principais canções colocadas nos primeiros lugares, deviam tudo a autores de esquerda. José Carlos Ary dos Santos, comunista, era autor de várias letras, como o Cavalo à solta, cantado por Fernando Tordo que cantou depois a Tourada.

Foi nessa altura que ocorreu em Portugal o acontecimento da década, em matéria musical: o festival de Vilar de Mouros, em Julho-Agosto de 1971, no qual estiveram presentes Elton John e Manfred Mann e pelas cores nacionais uma série de grupos rock, de imitação da batida lá de fora, como os Psico, Sindicato, Pentágono com Paulo de Carvalho, Quarteto 1111, de José Cid, Objectivo, Pop Five music incorporated ( estes títulos!) e outros, como os Celos de Barcelos que levaram uma assobiadela monumental.

Ary dos Santos, fazia letras para músicas de Nuno Nazareth Fernandes e músicos como Pedro Osório e depois José Niza, durante anos a fio, concorreram ao Festival da Canção. Em 1970, Paulo de Carvalho, com Corre Nina; Fernando Tordo, com Escrevo às cidades; o Quarteto Intróito, com Verdes Trigais e Hugo Maia de Loureiro,com Canção de Madrugar, disputaram o primeiro lugar a um desconhecido Sérgio Borges, com Onde vais rio que eu canto que ganhou na votação popular dos representantes dos distritos nacionais. No ano seguinte, a vencedora Menina, interpretada por Tonicha, teve a concorrer, Paulo de Carvalho e Flor sem tempo ( a minha preferida ), Fernando Tordo e Cavalo à solta, (uma das preferidas); Hugo Maia de Loureiro e Crónica de um dia ( uma belíssima canção) e ainda a verdíssima Daphne e Verde Pino e Intróito dos Verdes Trigais e um EFE 5 com Rosa Roseira. Diga-se que na época, a vencedora Tonicha e a sua Menina, foram assimiladas pela bem-pensadoria da Esquerda, um perfeito exemplo do nacional-cançonetismo e disseram-no livremente, ao Mundo da Canção da época. A crítica das canções concorrentes, feita no Mundo da Canção, é exemplar do espírito do tempo. Sobre a canção de Paulo de Carvalho, Flor sem tempo, escrevia o crítico Fernando Cordeiro:"claro que havia Paulo de Carvalho e toda a gigantesca máquina publicitária levantada pela Movieplay e que chegaram resolutamente a ser apontados de possíveis vencedores. (...)Mas a promoção foi demasiado gritada, quase agressiva, primitiva, em suma. E a própria canção não ajudou muito. Musicalmente incipiente (estrutura harmónica monolítica, que é como quem diz limitada, pobre, mesmo em variedade e variações; de líricas." Resta dizer que a canção vencedora, Menina, era editada pelas produções Zip Zip, outra das majors da época

Torna-se interessante, ler o que diziam os diversos músicos e intérpretes, no tempo de um "fascismo" em que havia censura e segundo o seu particular relato histórico, havia uma mão férrea sobre o direito de exprimir opinião. Na Mundo da Canção, isenta de exame prévio até muito mais tarde, segundo confissão dos seus mentores, era notória a liberdade de expressão sobre gostos musicais e de tendência. Ary dos Santos, uma das figuras de proa dos letristas de música popular, nem falava sobre o festival, apesar de assinar várias letras de canções.

A par desses nomes que se repetiram durante anos a fio, pouca gente ouvia falar e muito menos ouvia a música da Filarmónica Fraude e depois, no final de 1973, da Banda do Casaco. Como não se deu importância mediática à música de Luís Rego que no início dos setenta, gravou em França um single fora de série, com a canção Amor Novo. Ou ainda a um espantoso LP de José Almada de 1970, com músicas e líricas fora de tempo e que ainda hoje se pode ouvir como uma pequena maravilha de composição, a par dos melhores discos de sempre, da música popular portuguesa.

E fora dos circuitos de bem-pensantes, e das referências na imprensa, havia o fado. E as canções de grupos como o Conjunto Maria Albertina, Duo Ouro Negro, o conjunto António Mafra do eram p´raí sete e pico e outros êxitos do género da Igreja toda iluminada, do Trio Odemira. Estes contavam para os espectáculos em “serões para trabalhadores”, da FNAT e em romarias populares, num tempo em que ainda nem havia cassetes, mas singles em 45 rtm, e que não se ouviam nos lugares dos progressistas da canção e da cançoneta. Marco Paulo viria depois, com os seus Dois amores e durou até aos anos oitenta ou um pouco mais.

Nessa altura porém, o panorama que o Sete apresentava ao público leitor, era outro, como se evidencia por esta imagem do jornal de 29.12.1982.

Em 26 de Fevereiro de 2000, o Diário de Noticias, pelas teclas dos especialistas do DNMais, elencava os 100 mais da música popular portuguesa. Os primeiros dez, são, por ordem decrescente:

José Afonso e Venham mais cinco, de 1973.

Amália Rodrigues e Com que voz, de 1970.

Carlos Paredes e Movimento perpétuo, de 1971

António Variações e Anjo da Guarda, de 1983.

Sérgio Godinho e Pano Cru, de 1978.

Rui Veloso e Ar de Rock, de 1980.

José Mário Branco e Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de 1971.

Pedro Abrunhosa e Viagens, de 1994.

Fausto, Por este rio acima, de 1982.

Madredeus, O espírito da paz, de 1994.

Quem disser que a Esquerda está mal representada ou que se equilibram as ideias do espectro político no campo musical, não está a ver bem o panorama ou não escutou esta banda sonora.


Imagens: de Vilar de Mouros, do livro Vilar de Mouros de Fernando Zamith, edições Afrontamento, 2003; Mundo da Canção, números de 1971 e 72 e do jornal Sete.

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