Ministério da Educação "vai ter de recuar" no fecho das escolas
Decisão viola cartas educativas que foram pedidas, subsidiadas e aprovadas pelo Governo
A decisão do Ministério da Educação de fechar as escolas primárias com menos de 21 alunos faz tábua rasa das Cartas Educativas que pediu às autarquias, subsidiou e aprovou. E chega sem alternativas no terreno: poucos dos centros escolares previstos estão de pé.
Ninguém acredita nos números, apesar de a ministra Isabel Alçada garantir que já tem acordo com autarquias para encerrar muitas das perto de mil escolas do 1º ciclo com menos de 21 alunos. Dessas, 400 já tinham fecho decretado e só por especial favor funcionaram este ano. Do total, 500 não deverão reabrir em Setembro, determinou o Governo.
"Eles sabem que não vão conseguir", diz Francisco Almeida, da Federação Nacional dos Professores (Fenprof). E José António Ganhão, da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), não acredita mesmo. O Ministério "vai ter de recuar", pelo simples facto de que não há, no terreno, condições para realojar as crianças. "Haverá casos em que será possível, mas não são a maioria", diz o autarca de Benavente, que lamenta o desrespeito pelas autarquias e pelas famílias.
Em causa estão as Cartas Educativas. Aprovadas há dois ou três anos, são fruto de estudos aprofundados que custaram dinheiro ao erário público. E previam encerramentos combinando a criação de centros escolares para reunir alunos de várias escolas com as especificidades de cada concelho. Incluindo coisas tão simples como o clima e as condições das estradas. Porque as distâncias até podem ser curtas, mas, a não ser que seja directo de cada localidade, um transporte vai ter de correr muitas capelinhas para apanhar todos os alunos. E transformar um percurso curto em mais de uma hora de estrada.
"As cartas são instrumentos de planeamento para o presente e o futuro. Mas, de uma forma inesperada, somos surpreendidos com um decreto-lei à margem de qualquer acordo com a ANMP", reage António José Ganhão. Sem compreender a necessidade nem a pressa de um decreto-lei quando as ditas cartas já previam o encerramento de escolas.
A determinação viola "a única regra existente" - a das cartas -, completa Francisco Almeida, que pertence ao sindicato de professores da região mais afectada pela medida, o Centro. Só em Viseu há 86 escolas a cumprir o critério numérico do Ministério. Em Coimbra, uma contagem provisória aponta 60, na Guarda são 54.
Mais uma nota de incompreensão: "O actual secretário de Estado da Educação, João Trocado da Mata, era o director do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério, cujo parecer era obrigatório na homologação das Cartas Educativas". A conclusão que o sindicalista tem ouvido de vários autarcas é a de que se está perante "uma brincadeira". "Assim ninguém consegue governar nada".
A reorganização, alerta do seu lado Albino Almeida, da Confederação de Associações de Pais, foi desenhada como "um caminho a percorrer", que "não precisa de ser atabalhoado. E pede compreensão. As condições para um fecho são as de todos: oferecer escolas melhores (com cantina, desporto e música), que não podem passar mais de meia hora num autocarro.
Viagem às aldeias que não querem ser modernas
Cabril e Ventosa, em Castro Daire e Vouzela, estão na lista das escolas a abater. Porque alguém fez contas de cabeça. Por ali há estradas onde não passam carros
"No tempo em que não havia desenvolvimento, era escolas em todo o lado". Ela está de negro, num caminho de Sacorelhe onde há que ir porta adentro para deixar passar os carros. Em Sacorelhe já houve desses tempos. Com escola. Hoje, é um lugarejo bucólico da Ventosa, a uns curtos dez minutos de Vouzela, a menos ainda da moderna A25. A escola, essa, morreu.
A canalhada já não corre por ali - a pouca que há vai ao bé-a-bá com "o Carlos da carrinha" até à Ventosa Centro, chamemos-lhe assim. Até ver. Ali, a escolinha brilha do fresco das obras que lhe acrescentaram pavilhão e refeitório. Com cozinha e tudo. Para nada. Os almoços só ali foram feitos uns meses. Agora vêm de fora. Até ver. Porque dali, dobrado o Verão, terão saído seis meninos para o ciclo e entrado quatro do jardim-de-infância. Serão 16. Menos do que os 21 que o Ministério da Educação definiu, de repente, como limite para uma primária ter direito a risos de criança.
Célia Dias tem um abaixo-assinado numa mão e a mão de Rui na outra. A avó de Carolina também acena com o papel, ao balcão do Santo António. O palavreado será caro, uma obscura previsão de criar mega-escolas em Vouzela e meter no mesmo saco miúdos e graúdos. E fechar salas concelho fora. É o protesto possível quando as contas do Governo acabam com 12 das 18 escolas de Vouzela. Na Câmara, Sofia Martinho esgrime argumentos contra, fala da Carta Educativa homologada pelo Ministério e lembra que o financiamento para construir centros escolares com melhores condições ainda não está todo aprovado. Há dois a caminho, faltam três para espalhar por Vouzela e poder fechar as escolas, garante a técnica de Educação. "Para quê transportar crianças se não se lhes dá melhores condições?" Brandimos o argumento ministerial: separar as aulas dos quatro anos do 1º ciclo, que, país fora, ainda são dadas por atacado. "Tenho dúvidas: "Os nossos melhores alunos são de escolas de sala única". Está dito.
Eduardo é um deles. Corre no largo da Ventosa, com Carolina. Ambos da 3ª classe, como Rui. Carolina fica meia triste se a escola fechar. São muitos anos, a pré-primária ali, a lembrança de quando encontrava "caganitas de rato" na carteira. Hoje não, que aquilo cintila. Eduardo só sorri. Ir para a escola em Vouzela é "mau". Pronto. Rui abre-se algo mais. Gosta de aprender ali, a 50 metros de casa.
E eles são dos grandes. O problema será dos mais pequenos. Ana, mãe da Carolina, foi auxiliar no jardim-de-infância até há meses. Lembra-se do choro dos miúdos que iam para a 1ª classe e iam comer ao infantário porque era ali que se sentiam seguros. "A passagem para a primária é um choque grande para eles". E será, apesar da curta distância, desumano. Porque se Rui e Eduardo e Carolina vivem na Ventosa Centro, outros 15 são de Sacorelhe e sítios mais perdidos, onde são apanhados pelo "Carlos da carrinha", não raro à margem da estrada, depois de caminhos onde não cabem rodados. Hoje, são deixados na escolinha. Ela fechando, terão de se levantar antes das galinhas para se enfiar, à sorte deles, na carreira.
E não, a vila não é nada longe. Fosse essa a distância de Cabril a Castro Daire e os ânimos andariam mais serenos por aquela freguesia remota encostada a Arouca. Anteontem, ali, não havia escola. Era dia de passeio, os 14 meninos da escola florida com campo da bola da largura de uma baliza, foram até Ílhavo. No silêncio da fria morrinha, os seixos brancos a dizer Cabril soam tristes no edifício que, assim vazio, deixa antever o futuro.
Joaquina Paiva despacha almoços no Cantinho de Cabril, à medida do conduto que haverá no talho da porta do lado. Hoje, só para clientes adultos. Os outros, lá está, foram para Ílhavo. Menu escolar pendurado frente aos olhos, descasca batatas lamentando que, quando as crianças se forem, ninguém lhes haverá de levar a sopa à boca. E Joaquina perderá aquele arredondamento de fim de mês e Gaspar Duarte, dono do Cantinho, o pouquito que ganha com as refeições escolares. Mas nem será isso que os incomoda. É o vazio que se anuncia. "Tiram-nos as crianças, tiram-nos tudo".
Por ora, nos fins de tarde, fazem companhia à terra, 17 km de freguesia de ponta a ponta. No futuro, diz Francina, avó de Marta, lágrima no olho, erguerão às seis da manhã para a carreira e só voltarão a ser ouvidos pelas sete da tarde. Como os grandes dali. Enquanto os pais não desistirem. Os filhos de Jorge Teles são pais que foram com os filhos. A aldeia silencia-se, já tem lugarejos fantasmas. Jorge lembra-se de quando era professor e corriam por ali mais de 120 putos. E havia telescola. Desenvolvimento no tempo sem ele. O de hoje não é para ali chamado. A Internet de meio mega ameaça não passar disso, sem escola não há investimento da PT.
"Até nisso somos prejudicados". José Gonçalves preside à Junta. E tem a garantia da autarquia que a escola não se vai, porque não há centros escolares prontos. Sem certezas. A única é a de que está tudo do avesso no país: Alvarenga, ali a dez minutos, tem escolas e gente e tudo. Mas fica noutro concelho, noutro distrito, noutra região de Educação, a anos-luz de Cabril. "São mais abertas as fronteiras entre países do que entre municípios dentro do país", resume António Luís, director do Agrupamento de Escolas de Castro Daire e com um olhar sem véus sobre a rede de escolas. Sim, muitas devem fechar. Não, não devem fechar se não se oferecer nada às crianças além de estradas às curvas. Sim, o fecho é economicista. Não, o Ministério não respeita o que é pensado pelas escolas e pelas autarquias. Sim, Cabril está na lista negra. "É uma sentença de morte para a freguesia" - José Gonçalves despede-se, emoldurado pelas alminhas da praça. "Com Deus eu vou e volto".
"É um incentivo ao despovoamento"
A tarde faz caretas e à hora da merenda quase não se vê vivalma nas ruas de Lamares. Pelo acesso à escola primária local desta aldeia de Vila Real ecoa o alarido das crianças que correm atrás da bola no recreio. É tempo de actividades extracurriculares para os 13 alunos que ali estudam. São de Lamares, Lagares e Gache.
Pelas novas contas do Governo, esta é uma das escolas que vai entrar na lista das que, com menos de 21 alunos, vão ter de encerrar no final do ano lectivo. Uma das 23 do concelho de Vila Real, nas contas da autarquia. Mas a vereadora da Educação, Dolores Monteiro, não sabe onde poderia colocar as cerca de 300 crianças que ficariam sem escola. Pelos menos até que os centros escolares estejam prontos a funcionar.
Na aldeia de Lamares, como tantos outros lugares do interior, os jovens abalam e restam os velhos. Os moradores torcem o nariz à possibilidade de também ficarem sem escola. "Cuido eu que aqui não a deviam fechar", atira Filomena Correia, que tem um café na localidade. "Porque aqui ainda há bastantes miúdos e dão alegria à povoação". Não tem lá netos a estudar, mas está segura de que se o estabelecimento de ensino fechar "a aldeia fica mais pobre".
Nuno Vilela concorda e assegura que o fecho de escolas nas aldeias "é um incentivo ao despovoamento". Sabe que "há pessoas da cidade de Vila Real que têm procurado Lamares para viver, mas, sem escola para os filhos, se calhar voltam a ir embora". Pensa, até, que esse facto acabará por levar alguns pais a procurar viver próximo da escola dos filhos". "Só cá vão ficar os velhos como eu", lamenta Joaquim Ribeiro, 73 anos.
Dolores Monteiro está convencida que se está a fazer "grande alarme" sobre a decisão do Governo de encerrar escolas com menos de 21 alunos, acreditando que a medida não irá abranger todos os concelhos de igual modo. Para já, em Vila Real e de acordo com a Carta Educativa, só vão fechar no final deste ano lectivo as escolas de Mateus e Abambres, sendo que os alunos vão passar para a da Araucária, que foi remodelada.
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